Hospital

Mexi as partes soltas do cubo rodando-as e sorri quando comecei a perceber para que é aquilo servia. Os médicos tinham dito que era bom vir aqui brincar com alguns dos brinquedos das crianças para estimular o meu cérebro, para ver se me lembrava de alguma coisa, mas eu já vinha aqui há dois dias e não tinha acontecido nada. Olhei para o cubo quando já estava com as cores todas iguais para os mesmos lados e pousei-o em cima da mesa olhando para uma menina pequenina a desenhar num canto da sala.

Eu podia ser ainda uma "miúda" quando engravidara, mas a verdade era que amara a minha filha desde o primeiro momento em que soube que a tinha dentro de mim, amara-a ainda mais depois de sentir o seu primeiro pontapé, e cada toque seu o meu amor cresci, até que se tornou indestrutível quando a tive pela primeira vez nos meus braços, mas a verdade era que alguém, de alguma forma tinha acabado com todo aquele sentimento ao roubá-la de mim. Abanei a cabeça, sentindo a mesma dor de sempre no coração e limpei as bochechas, olhando para a menina pequenina que estava sentada ao fundo da sala. Entrei devagarinho na mesma, só reparando depois que o rapaz de quem eu já não gostava lá estava. Olhei-o pelo canto do olho, não dizendo nada e fui colocar-me mais ou menos a um canto também, ficando a olhar para ela, que ao perceber que estava a ser observada me olhou. Sorri-lhe e , ao fazê-lo, as lágrimas voltaram a formar-se. Eu queria tanto a minha bebé de volta.

Depois de passar o olhar na miuda vi para onde ela estava a olhar e reparei naquela rapariga que eu tinha magoado. Mordi o lábio inferior e segui os movimentos dela quando entrou reparando nas bochechas molhadas e nos olhos vermelhos e brilhantes. Juntei as sobrancelhas ligeiramente confuso e forcei-me a avançar até ela.
-Estás a chorar por causa de mim? - perguntei espreitando-a.

Fiquei apenas a olhar para a menina, que voltou a concentrar-se no seu desenho, não parecendo muito importada com o facto de eu estar a olhar para ela, e funguei baixinho, tendo de desviar o olhar quando senti alguém ao meu lado, seguido de uma voz que eu sabia já ter ouvido antes. Passei rapidamente a mão pelas bochechas, endireitando-me na cadeira e revirei os olhos.
- Eu não estou a chorar.- disse logo, desviando o olhar da cara dele.- e mesmo que estivesse não era por tua causa.-murmurei.- lamento informar mas o mundo não gira à tua volta.

- Eu sei que não. Eles dizem que eu posso nunca mais ser autónomo novamente, mas eu não sou burro - disse calmamente - estavas a chorar - estiquei um dedo na direcção dela mas tive que afasta-lo, ela estava zangada e era perigoso, ela ainda me batia ou mordia. Olhei para o cubo que tinha feito e dei-lho.

Fechei a minha boca com força, tentando manter-me calada enquanto ele falava e acabei mesmo por me sentir mal ao perceber que tinha exagerado no que tinha dito. Eu podia ter uma perna partida, mas ele não se lembrava de nada.
- Tu não te lembras mesmo de nada? Isso é possível? - perguntei, para me tentar redimir, mas logo voltei a revirar os olhos quando disse que eu estava a chorar.- cala-te.- resmunguei e baixei o olhar para o cubo que ele me estendia, fazendo uma cara estranha enquanto pegava nele.- o que queres que faça com isto?

Encolhi os ombros.
-Não sei - disse com uma expressão confusa. Não sabia o que é que era possível ou não. Fechei a boca quando ela disse para me calmar e fiquei a olha-la baixando o olhar para o cubo. Voltei a agarra-lo e mexi-o até ficar com várias cores de novo - é para resolveres, eu também não sabia - disse orgulhoso por lhe ter ensinado alguma coisa.

Preferia mil vezes ter uma perna toda partidinha do que não me lembrar de nada sobre mim ou sobre o que me rodeava, devia ser uma sensação horrível. Levantei apenas uma sobrancelha, quando o vi tirar-me o cubo das mãos e arregalei os olhos por o estar a desfazer.
- Não faças isso.- murmurei, mas já não fui a tempo porque quando mo voltou a passar para as mãos, já ele estava indecifrável de novo. Subi o olhar para ele, ficando com cara de parva quando me disse que era para resolver e revirei os olhos, como já se tornava habitual.- que é para resolver sei eu.- abanei a cabeça.- mas era preciso que eu conseguisse.- mexi o cubo, mas as cores não chegaram sequer a ficar iguais.- desde pequena que isto é demasiado chato e difícil para mim.- encolhi os ombros.

Fiquei mais sério quando disse que sabia que era para resolver, afinal não lhe tinha ensinado nada, só tinha feito figura de parvo, mas fiz uma expressão confusa por não estar a perceber a reação dela.
-Então para que é que perguntaste porque é que to dei? - perguntei confuso e tirei-o da mão dela de novo brincando com ele da outra vez para o tentar resolver - não é difícil.

Apesar de ser ele quem estava com uma cara toda confusa, fui eu quem fiz uma careta igualmente confusa com a sua pergunta.
- Só queria perceber qual era a tua intenção ao dar-mo.-tentei explicar.- se querias que ficasse com ele ou se querias que fizesse outra coisa.- fiz uma cara estranha, por ser uma coisa tão óbvio e encostei-me à cadeira, ficando a vê-lo resolver o cubo.- afinal já sabes qualquer coisa sobre ti.- disse.- além de quase matares pessoas, sabes resolver cubos mágicos.

-Era para resolveres - respondi com as sobrancelhas juntas no topo da testa. Acabei de resolver o cubo e olhei-a voltando a dar-lho. -Sei? - perguntei não percebendo o que ela queria dizer com aquilo porque a minha cabeça continuava sem memórias. Baixei o olhar e suspirei - eu não queria - disse apesar de não saber o que tinha acontecido ao certo. - tenho certeza.

Voltei a agarrar no cubo quando mo estendeu e pousei-o no meu colo, antes que ele tivesse vontade de o desfazer de novo.
- Eu vou deixar que sejas tu a fazê-lo, é mais fácil.- disse apenas e quando baixou o olhar, a minha sobrancelha voltou a subir.- eu não sei se querias ou não.- encolhi os ombros.- e isso é uma coisa que só vou descobrir quando te lembrares. - lá por estarmos a falar e eu ter "pena" dele por não se lembrar de nada, não queria dizer que eu me tinha esquecido do que tinha acontecido.

-Mas assim não aprendes - disse pousando as mãos nas rodas da minha cadeira afastando-me para a conseguia olhar bem. - Eles chamam-me Pyke - disse depois de alguns minutos em silêncio. Talvez eu nunca me lembrasse.- eu não gosto, mas podes chamar-me assim - encolhi os ombros e fiz uma careta com a dor o meu ombro que tinha deslocado - se quiseres - completei.

- Não faz mal.- respondi.- não me parece que a minha vida dependa de um cubo mágico.- voltei a encolher os ombros, devagarinho para não me doer. Fiquei calada durante o tempo em que ele também não falou e olhei pelo canto do olho para o sítio onde antes estava a menina, vendo que já se tinha ido embora. Suspirei, voltando depois a olhar para ele.- Pyke? - repeti com uma cara feia.- quem te deu esse nome deve ter muito amor ao seu cão.-meti a língua de fora, como se tivesse acabado de comer alguma coisa que soubesse mal.- não me digas que gostaste.- olhei-o horrorizada. Sinceramente não sabia o que era pior, não me lembrar do meu nome ou ter um nome daqueles.

-Cubo mágico? - levantei as sobrancelhas e voltei a pegar nele - porque é que lhe chamam de cubo mágico? - perguntei.
Fiz uma careta quando ela repetiu o nome que me tinham dado e arregalei os olhos quando meteu a língua de fora. - Tu és estranha - acabei por dizer e abanei a cabeça - é o único nome que me chamam, eu não sei o meu.

Baixei o olhar para o meu colo quando voltou a pegar no cubo e juntei ambas as sobrancelhas com a sua pergunta.
- Eu não sei.- encolhi os ombros.- vais ter de perguntar a quem inventou esse nome.- murmurei e mantive as minhas sobrancelhas levantadas quando disse que eu era estranha.- as pessoas é que te dão esse nome, e eu é que sou estranha? - mostrei um sorriso forçado, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha enquanto o ouvia.- podiam ter-te chamado de Matt, ou Jasper, ou John, ou outro nome qualquer.- disse.- mas tudo bem, eu trato-te por Pyke.- murmurei meio indiferente, até porque duvidava que falasse muitas mais vezes com ele.

Assenti quando ela disse que eu ia ter que perguntar a quem tinha inventado o nome e encolhi os ombros.
-Tu fazes caras esquisitas - disse com um meio sorriso e parei de brincar com uma pauzinho que estava em cima da mesa das crianças quando ela começou a dizer nomes - eu gosto de Matt. - disse - podes tratar-me assim?

Semicerrei ligeiramente os olhos ao ouvi-lo falar e encolhi os ombros, olhando em volta antes de falar.
- Acredita que a minha cara estava muito menos esquisita se não me tivesses metido aqui estes arranhões.- apontei para os mesmos. Eu tinha a noção de que era insuportável por estar sempre a dizer as mesmas coisas e a atirar-lhe à cara as mesmas coisas, mas eu não me importava. Olhei-o quando pareceu gostar de Matt e sorri muito ao de leve face à sua demonstração de bom gosto, assentindo.- posso, sempre é melhor do que Pyke.

Baixei o olhar com o que ela voltou a dizer.
-Desculpa - pedi de novo tal como tinha feito no primeiro dia em que a tinha visto e só a voltei a olhar quando disse que podia chamar-me Matt. - Obrigado - agradeci ficando a olha-la durante uns segundos e depois decidi afastar-me dela para não a aborrecer mais. - espero que fiques melhor - desejei já que não sabia se a ia ver mais vezes e tentei recordar-me do caminho até ao quarto. Era a primeira vez que saía sozinho.

Mordi a parte interior da minha bochecha quando baixou o olhar, como tinha feito antes, mas mantive a minha postura, encolhendo apenas os ombros.
- De nada.- disse apenas, quando me agradeceu por o chamar de Matt e fiquei a vê-lo afastar-se, como seria de esperar. Remexi-me na minha cadeira, pousando as mãos sobre as rodas e assenti ao que me disse antes de virar costas.- digo-te o mesmo.- murmurei e quando o vi já junto à porta, fiquei na dúvida se ele saberia voltar para o quarto. E aviso que foi mesmo só por isso que me voltei a aproximar.- queres que te leve lá? - isto não eram desculpas aceites, era antes, zelar pelos outros, não fosse ele provocar outro acidente.

Só tinha um braço para andar na cadeira de rodas, o outro já doía do esforço que tinha feito a vir para cá, mesmo assim fui andando devagar pelo corredor e vi ao meu lado Stella. Não disse nada até ela falar comigo.
-Sim, sabes onde é?- perguntei olhando para as placas à minha frente mas escusado será dizer que tudo o que estava ali escrito não significava nada para mim.

Ao ver a sua cara enquanto olhava para todos os lados percebi que estava mesmo a fazer a boa acção do dia.
- Sei.- disse enquanto assentia.- segue-me. - murmurei, tentando ir ligeiramente mais à frente dele e percorri os corredores, sentindo o olhar de algumas enfermeiras postos em nós. Das duas uma, ou sabiam quem eu era e se lembravam do escândalo que tinha feito por causa dele ou achavam que estávamos dementes por andarmos a passear pelos corredores todos partidinhos. Encolhi os ombros aos meus próprios pensamentos, pouco me importando e só parei quando chegámos ao seu quarto. Dei a volta, para ficar de frente para ele e apontei com o queixo para o interior do quarto.- estás entregue.

Olhei para o número do quarto quando ela parou e esforcei-me para parar a cadeira de rodas, mas não consegui e foi sem querer contra a dela. Fiz uma careta tanto por uma dor aguda que passou rápido como pelo facto do que tinha acontecido.
-Desculpa. - pedi novamente antes que ela me quisesse matar e tentei entrar no quarto só com uma mão já que não podia mexer a outra.

Desviei o olhar durante um segundo, olhando para o seu quarto, e foi o que bastou para sentir uma coisa vir contra mim. Soltei um grito de dor, por ter embatido contra as minhas costelas, que ainda não estavam propriamente boas e quando desviei o olhar apercebi-me de que tinha sido Matt, como já seria de se esperar não é? Respirei fundo, tentando acalmar as dores e quando consegui falar, já ele estava a entrar para o quarto.
- Tu deves ter algo contra mim e eu não sei.- resmunguei, pouco me importando se ele ouvia ou não.- é que só pode.- abanei a cabeça, cerrando o maxilar enquanto tentava não me exaltar demasiado. Abanei a cabeça e antes que dissesse ou fizesse alguma coisa que não devia, fui-me embora.

-Não... - vi-a ir embora e suspirei - não foi por mal - disse mais baixo e toquei à campainha para chamar a enfermeira. Não conseguia levantar-me para ir para a cama, o que me irritava ligeiramente, mas também tentava não dar importância. Quando a enfermeira veio e me ajudou a voltar para a cama eu acomodei-me.
-Agora podias dormir P...
-É Matt agora - ela olhou-me surpreendida.
-Lembraste-te de alguma coisa? - perguntou-me e eu abanei a cabeça
-Eu gosto de Matt.